No caminho até a “Pedra Escrevida”, como os moradores nativos chamavam o Complexo Arqueológico Serra das Paridas, localizado no município de Lençóis, na Chapada Diamantina, o guia de turismo Aderbal Nogueira nos convida a exercitar a criatividade e interpretar o significado das centenas de pinturas rupestres encontradas no maior acervo arqueológico da Bahia.
Para ele, alguns traçados alinhados nos paredões rochosos representam a grelha para assar o peixe; já as figuras que lembram diversas formas humanas em círculo, representam rituais da tribo em volta de uma fogueira e, em tom de brincadeira, para um desenho quase indecifrável, até os óculos escuros para contemplar o por do sol já existiam naquela época. “Aqui é o lugar para soltar a imaginação, para você ter uma ideia, até ícones do windows as crianças enxergam”, conta sorrindo.
E dá-lhe imaginação, afinal, para tentar compreender figuras de milhares de anos atrás, é necessário viajar no tempo e em diferentes horizontes culturais. Algumas figuras, por exemplo, extrapolam o âmbito terrestre, como o é o caso do desenho que ganhou o título de mascote do complexo, apelidado de E.T, fazendo alusão ao personagem mais carismático do cineasta Steven Spielberg. Já as figuras mais famosas são as das mulheres – supostamente – em posição de cócoras, como eram realizados os partos antigamente, e que dão o nome ao complexo.
Para os arqueólogos, no local predominam quatro estilos gráficos, alguns mais naturalísticos e outros mais abstratos, nas cores vermelho e amarelo. As mais antigas, são predominantemente realistas, com figuras de animais (zoomórficas) e humanas (antropomórficas), e as mais contemporâneas, são consideradas simbólicas, através da utilização de figuras geométricas.
Para o Professor Dr. Carlos Etchevarne, coordenador do Grupo de Pesquisa Bahia Arqueológica, o significado das gravuras depende do referencial cultural de cada um. “Para mim essa figura se refere a uma teia de aranha”, explica apontando para dois círculos, um dentro do outro, com uma cruz em cima; “mas para um índio, isso é apenas o mapa de uma tribo com as trilhas para a roça”, conclui.
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As pinturas rupestres são como a nossa escrita atual, pode servir como um material didático para ensinar a caça, pode ser uma poesia ou demarcar um território. Acredita-se que em algumas situações elas eram feitas em rituais e por uma pessoa especial eleita pelo grupo. “A arqueologia não atribui significados, a busca é para entender os objetivos e o contexto. Achamos desenhos delicados em uma toca escondida, baixa e escura. O que interpretamos sobre isso? Era uma mensagem que não podia ser vista por muitas pessoas, provavelmente um segredo. Ou seja, existe uma relação de funções para os grafismos”, afirma o professor.
Revelações enterradas
Neste mar de suposições, é necessário utilizar diversos mecanismos científicos para decifrar os mistérios em torno desses artistas pré-históricos. E as escavações são uma das principais ações para encontrar pistas concretas. É o que começaram a fazer, neste mês de setembro, os arqueólogos do projeto Circuitos Arqueológicos da Chapada Diamantina, que está sendo realizado pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) com apoio do IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia).
“Estamos buscando encontrar elementos como fósseis, restos de alimentos e ferramentas que, juntos, nos deem indícios de quem eram e como viviam esses pintores”, explica Etchevarne. Durante as primeiras escavações já foram descobertos pequenos ossos de animais, blocos de pedras lascadas, vestígios de uma fogueira e fragmentos de um esqueleto humano, incluindo dois dentes.
Algumas evidências indicam que por ali passaram diferentes grupos, predominantemente nômades e com bagagens culturais parecidas. “Eu vejo claramente que essa pedra, por exemplo, sofreu interferência humana, ela possui um gume geralmente utilizado para cortar couro, carne e fibra. Um tipo de instrumento típico dos caçadores-coletores”, – classificação dada ao modo de subsistência dos primeiros habitantes da terra, que surgiram há milhares de anos e se mantiveram até o século XIX – explica o professor.
Além dos artefatos encontrados, o modo de realizar a escavação também é determinante, além de ser um processo demorado e delicado. As camadas de terra são removidas a cada 10 cm e em quadrantes de um metro quadrado. O que se deve ao solo também possui idade e história, características identificadas através da diferente coloração existente entre as suas camadas.
“Na superfície existe uma acumulação de material orgânico escuro, provinda dos paredões rochosos de arenito que vão se desmanchando, ou seja, um evento geológico mais recente. Por isso, acreditamos que os primeiros habitantes que chegaram aqui encontraram o solo de coloração amarela, localizado na base”, afirma Etchevarne, indicando a faixa mais profunda da área escavada.
Concluída a pesquisa de campo, que ainda irá levar alguns meses, o passo subsequente está no laboratório. Descobrir a idade dos elementos encontrados pode funcionar como uma importante peça que restava do quebra-cabeça, apesar de nem sempre ser uma tarefa simples. Não existe, por exemplo, um método atual capaz de datar as pinturas rupestres encontradas na região, feitas com material mineral. Apesar disso, o grupo de pesquisa continua apostando em idas e vindas de laboratórios internacionais e diversos profissionais da ciência para chegar a um resultado satisfatório.
Enquanto não desatam esse nó, eles apostam na datação de materiais biológicos, como os vestígios de uma fogueira, realizada através de uma técnica muito difundida na arqueologia, o Carbono 14. Procedimento já aplicado em objetos encontrados em outras áreas da região, no município de Morro do Chapéu, onde foram achados carvões de 2.900 anos de idade.
Circuitos Arqueológicos
A Chapada Diamantina é um bom lugar para contar histórias muito antigas, seja pela sua formação geológica, que vivenciou grandes mudanças climáticas do planeta, ou então, pela história da evolução da humanidade, que também deixou marcas registradas em suas rochas espalhadas em seus mais de 150 mil hectares.
Devido a esse patrimônio, pesquisadores e autoridades resolveram realizar o projeto Circuitos Arqueológicos da Chapada Diamantina, com o objetivo de preservar as pinturas rupestres, reconhecer o seu valor histórico e cultural, e criar um roteiro de visitação arqueológico no estado, com a participação de sítios de seis municípios da região: Iraquara, Lençóis, Morro do Chapéu, Palmeiras, Seabra e Wagner.
O projeto está sendo realizado em diversas fases, incluindo capacitação de agentes locais e pesquisa, e deverá levar mais dois anos e meio para ser concluído. Ele visa criar um conjunto de dados para contextualizar as pinturas e, finalmente, estar pronto para receber visitantes.
Mais informações: www.bahiarqueologica.com
Fotos: Thaís de Albuquerque
Texto: Laís Correard